Na antiguidade, em textos que datam de quase 2.000 anos A.C., civilizações imaginavam que as “Pedras do Céu”, muitas delas compostas de ferro, só poderiam ser um presente dos Deuses, sendo assim utilizadas como talismãs ou para a confecção de armas e ferramentas, principalmente por serem artefatos de alta resistência. Até então, não se sabia da origem dos meteoritos, o que eles significavam ou de onde vinham, apenas dos seus valores místicos.
Em 1794, quando Ernst Chladni, um físico alemão, publicou um estudo sobre os meteoritos ferrosos, explicando sua origem e os fenômenos associados à queda, foi completamente desacreditado pela comunidade científica da época. Até que poucos anos depois, em 1803, uma chuva de meteoritos caiu sob a aldeia de L’Aigle, Normandia Francesa, testemunhada por seus cidadãos que recuperaram mais de 3.000 fragmentos espalhados pela região.
Mas essa história, de quando os meteoritos se tornaram cientificamente reconhecidos, ficará para um próximo encontro, pois agora voltaremos um pouquinho no tempo, no século XV, mais precisamente no ano de 1492, na cidade de Ensisheim, atual Alsácia Francesa, porém naquela época ainda pertencia à Alemanha e ao Sacro Império Romano.
Era 07/11/1492 (pelo então calendário juliano), por volta das 11:30 da manhã, quando uma rocha escura lançada sobre a Terra, rasgando o céu e causando um enorme estrondo que ecoou por mais de 150 km, caiu sobre um campo de trigo, onde logo em seguida foi escavado e recuperado intacto. Os habitantes da cidade, que seguiam os preceitos católicos, acreditaram ser um sinal de Deus e começaram a cortar pedaços para serem guardados como talismãs. O magistrado local, nomeado pela Igreja, ficou furioso com tal ato, pois o objeto podia ser realmente um presente divino, mas também poderia ser a obra do diabo. Ele ordenou que o meteorito fosse removido para Ensisheim e preso em correntes, temendo que o meteorito decidisse voar de volta ao seu “mestre satânico”.
Nesse contexto, Maximiliano (1459-1519), filho do Sacro Imperador Romano Frederico III, aos 33 anos tinha o grande título de Rei dos Romanos. Em 26 de novembro daquele ano, estava a caminho da batalha contra os franceses, em defesa do território borgonhês, no qual sua esposa Maria era filha de Carlos, o Duque da Borgonha. Através dos rumores pela cidade, sabendo da misteriosa pedra, Maximiliano logo ordenou que a mesma fosse transferida para seu castelo real, perto da muralha da cidade.
Nos dias que se seguiram, Maximiliano, após se convencer de que o meteorito era, de fato, um presente de Deus e um sinal de boa sorte, devolveu a pedra ao povo de Ensisheim com uma ordem de que eles deveriam preservá-lo intacto em sua igreja paroquial como eterno testemunho deste grande evento milagroso, lembrando a todos de sua origem celestial. Porém, arrancou antes dois fragmentos, um dos quais guardava para si e o outro deu ao amigo, o arquiduque Sigismund da Áustria.
Logo o meteorito de Ensisheim ganhou fama, que perdura por mais de cinco séculos, quando Maximiliano venceu sua iminente batalha contra as tropas francesas. Tudo começou com um satirista e poeta chamado Sebastian Brant (1457-1521). Quando a pedra caiu, Brant morava em Basiléia, apenas 40 km ao sul de Ensisheim, e acreditando que a queda era um sinal divino a favor do Rei Maximiliano e um mau presságio para seus inimigos, ainda no final de 1492, descreveu o meteorito e sua queda no poema “Folhas Soltas” e também no Fólio 257 da Crônica de Nuremberg, com versos em latim e alemão, que foram publicados pelas recentes gráficas que surgiram na Europa Medieval.
Ensisheim foi a primeira queda testemunhada após a invenção da impressão mecanizada por Johann Gensfleisch Guttenberg (1397-1468), na Alemanha, na década de 1450, fazendo com que, em poucas semanas, folhetos, ilustrados com dramáticas xilogravuras contando a incrível história do meteorito de Ensisheim, fossem impressos e distribuídos em três cidades da região. Uma parte do meteorito também foi enviada ao cardeal Piccolomini (mais tarde Papa Pio III), no Vaticano, juntamente com vários versos relacionados, escritos por Brant.
Embora a identidade do “mestre” que idealizou as xilogravuras para os trabalhos de Brant permaneça desconhecida, a sugestão foi de que poderiam ter sido feitas por Albrecht Durer (1471-1528), no qual passou a última parte de 1492 em Basiléia. Durer já havia feito xilogravuras para outros poemas de Brant e, aparentemente, colocou sua própria impressão da bola de fogo de Ensisheim.
No entanto, este trabalho permaneceu praticamente desconhecido do mundo da arte até 1960, quando um pequeno painel representando o Penitente São Jerônimo foi descoberto em particular coleção de Sir Edmund Bacon, na Inglaterra. A parte de trás do painel continha essa imagem vívida de uma bola de futebol amarelada atravessando nuvens agitadas e explodindo em raios vermelho-laranja. Esta é a única pintura conhecida dedicada inteiramente a esse evento e constitui uma evidência poderosa de que esse grande artista pessoalmente testemunhou a explosão da bola de fogo de Ensisheim.
Desde o início, a queda da pedra em Ensisheim foi vista como um evento de significado extraordinário e a história foi reproduzida em manuscritos e livros pelos próximos quinhentos anos que se seguiram. Ele foi listado em alguns livros ao lado de eventos de grande relevância, como, por exemplo, a morte do Papa Inocêncio III e a sucessão do Papa Alexandre VI de Borgia; em outros, é o único evento listado para o ano de 1492.
Em 1789, a cidade de Ensisheim, já pertencente ao território francês, testemunhou a França ser dilacerada pela Revolução e se tornar uma república um ano depois. Em 1793, os revolucionários franceses levaram o meteorito para ser exposto na Bibliotheque Nationale, em Colmar, a fim de que um número maior de cidadãos da República pudesse vê-lo. Ele permaneceu nesse local até 1803 – o ano da queda em L’Aigle – quando foi devolvido à igreja de Ensisheim. Em 1854, essa igreja, infelizmente, entrou em colapso e o meteorito foi transferido para o Hotel de Ville, onde permanece até hoje.
O meteorito de Ensisheim também sobreviveu incólume à Guerra dos Trinta Anos, à Revolução Francesa, à Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial, mas não à invasão de cientistas e supersticiosos. Hoje, uma amostra de 55,75 kg do meteorito, que inicialmente já pesou 127 kg, classificou-o como um Condrito Ordinário brechado LL6, com grandes manchas de crosta de fusão. Esta é a primeira queda de meteorito testemunhada no Ocidente e a segunda mais antiga do mundo, sendo superada apenas pelo meteorito Nogata, que caiu em 19 de maio de 861 dC.
Há poucas evidências de qualquer veneração a cultos meteoríticos na Europa nos últimos 1.500 anos. A maioria das histórias de meteoritos na antiguidade é em hieróglifos do antigo Egito, em textos sumérios e no mundo árabe. A influência norteadora do cristianismo condenou todos os rituais e crenças pagãs durante a Idade Média, deixando apenas vestígios de religiões e costumes anteriores.
Mesmo assim, o meteorito de Ensisheim sobreviveu! Com toda sua história e mistério, pode ser apreciado ao visitar a Alsácia francesa, onde encontra-se em exibição no Hotel de Ville, em Ensisheim, permanecendo até hoje cuidadosamente vigiado pela “Irmandade de São Jorge dos Guardiões do Meteorito de Ensisheim”. Em sua placa, a seguinte mensagem é deixada pelos guardiões para seus visitantes:
“Muitos sabem muito sobre esta pedra, todo mundo sabe alguma coisa, mas ninguém sabe o suficiente.”
Fundada em 1984, a Irmandade cuida de tudo relacionado ao meteorito, inclusive de acompanhá-lo a outras regiões para exposições. Esse grupo de guardiões é constituído por residentes locais nomeados, que juraram protegê-lo. Contudo, nos últimos anos, durante a feira anual Ensisheim Meteorite Show, que ocorre geralmente em junho, também acontece o chamado Confrérie des Guardiens de la Météorite d´Ensisheim, no qual nomeia personalidades mundiais ligadas diretamente com a preservação dos meteoritos e sua história. Na ocasião, em 2019, premiou com esse importante título o maior colecionador de meteoritos do Brasil, André Moutinho, e a maior especialista de meteoritos no país, a astrônoma Dr.ª Maria Elizabeth Zucolotto, também curadora da Coleção de Meteorítica do Museu Nacional/UFRJ.
O evento se destaca por ser a única feira exclusiva de meteoritos, além de poder rever os amigos de longa data, amantes dessas rochas tão preciosas. Com ar de descontração, belezas naturais e um charme único… Ensisheim ainda guarda a essência de uma típica cidade medieval!
Se for visitar o nordeste da França, já sabem que vale visitar esta região fantástica que é a Alsácia, lugar histórico, de belas paisagens, situado na planície do rio Reno e que faz fronteira com a Alemanha e a Suíça. Além de seus inúmeros atrativos, visitar o meteorito de Ensisheim se tornou agora uma parada obrigatória para os futuros viajantes! Seja você o próximo a embarcar nessa incrível viagem!
Fontes:
- Douglas, H. (1992). The Ensisheim Quincentenary. Impact!, (6), 2-5.
- Marvin, U. B. (1992). The meteorite of Ensisheim: 1492 to 1992. Meteoritics, 27(1), 28-72.
- Rowland, I. D. (1990). A contemporary account of the Ensisheim meteorite, 1492. Meteoritics, 25(1), 19-22.
- Zucolotto, M. E., do Carmo Fonseca, A., Antonello, L. L., & Monteiro, F. A. (2013). Decifrando os Meteoritos. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.
Pingback:L’Aigle: A Chuva de “pedras” que Comprovou a Origem Extraterrestre dos Meteoritos – Meteoritos