L’Aigle: A Chuva de “pedras” que Comprovou a Origem Extraterrestre dos Meteoritos

Em nosso último encontro, sobre o famoso meteorito de Ensisheim que caiu na França em 1492, foi citado brevemente sobre o meteorito de L’Aigle, aquele que comprovou cientificamente a origem extraterrestre das rochas vindas do “céu”.

Hoje, vou contar mais sobre esse meteorito histórico, que foi um divisor entre o místico e o científico para a Ciência Meteorítica, em uma Europa que vivia o Iluminismo, um movimento que tinha como objetivo promover a razão entre as pessoas, bem como o pensamento científico racional. Assim, vamos novamente fazer uma viagem no tempo para conhecer melhor a história dos meteoritos ou… os meteoritos na história!

O evento da chuva de meteoritos em L’Aigle não foi representado artisticamente na época. Esta imagem é uma representação artística de um meteoro passando pelas Ilhas Britânicas, em 1783. Fonte: Smithsonian Magazine, abril de 2017.
O evento da chuva de meteoritos em L’Aigle não foi representado artisticamente na época. Esta imagem é uma representação artística de um meteoro passando pelas Ilhas Britânicas, em 1783. Fonte: Smithsonian Magazine, abril de 2017.

Até 1803 os meteoritos eram tratados, tanto pelo povo quanto pela academia, como objetos místicos sagrados, com alguns utilizados como amuletos ou talismãs, mas, também, poderiam ser considerados como um sinal de mau presságio, sendo, por vezes, aprisionados às correntes.

Antes de L’Aigle, inúmeros relatos de “pedras” vindas do céu foram feitos por diferentes civilizações. Uma das mais antigas data do Reino da Trácia (antiga região macedônica, atualmente dividida entre Grécia, Turquia e Bulgária), onde o filósofo grego Diógenes de Apolônia, em 464 a.C., reconheceu como sendo de origem cósmica uma pedra marrom encontrada à beira do rio Aegos Potamos. Em sua citação ele diz:

“Meteoros são estrelas invisíveis que morrem, como a pedra de fogo que caiu na Terra.”

Contudo, foram necessários dois milênios, assim como diferentes eventos ao longo da história, para que sua teoria fosse comprovada. No entanto, seu nome não ficou esquecido e para homenageá-lo foi criado o grupo dos Diogenitos, que são acondritos originários do asteroide 4-Vesta. Apesar de muitos meteoros serem vistos cruzar os céus, como também muitos meteoritos vistos cair na Terra, três eventos foram cruciais para que estes objetos extraterrestres fossem aceitos perante a comunidade científica.

Físico alemão Ernst Chladni (1756 – 1827). Fonte: Science Photo Library
Físico alemão Ernst Chladni (1756 – 1827). Fonte: Science Photo Library

O primeiro deles foi a publicação do livro, em 1794, de Ernst Chladni, um físico alemão que sugeriu que os meteoritos vieram do espaço, relacionando as quedas com as bolas de fogo (meteoros). Ele baseou suas conclusões em 18 quedas testemunhadas e na análise de vários meteoritos, incluindo o famoso “ferro Pallas” (hoje conhecido como Palasitos) e a “pedra” de Ensisheim. Chladni estava hesitante em publicar sua constatação, pois sabia que estava indo contra os 2.000 anos de sabedoria herdado de Aristóteles e confirmado por Newton. A crença aristotélica era que tudo que caía do céu ou era visto no céu era chamado de meteoro, daí o termo “meteorologia”, logo Aristóteles afirmava que as pedras eram formadas na atmosfera por algum processo meteorológico. Séculos depois, em 1704, o renomado físico Isaac Newton afirmara que o espaço deveria estar vazio e não existiam corpos pequenos no espaço além da Lua. Dessa maneira, até aquele momento, acreditava-se que tais massas poderiam ter sido ejetadas vulcanicamente da Lua ou que o processo aristotélico era válido, levando à descrença a publicação de Chladni.

O segundo evento foi a queda fortuita de cinco meteoritos rochosos, hoje classificados com condritos ordinários, entre os anos de 1753 e 1798, sendo eles Tabor (1753), Lucé (1768), Siena (1794), Wold Cottage (1794) e Benares (1798). A química e a mineralogia comum entre eles, porém anômala a tudo que se conhecia da geologia terrestre, como, por exemplo, as inclusões de cálcio e alumínio (CAIs) e a presença de corpos redondos, mais tarde denominados côndrulos no final do século XIX por Gustav Rose, eram evidências da origem espacial desses corpos.

Meteoritos Tabor (1753), Lucé (1768), Siena (1794), Wold Cottage (1794) e Benares (1798). Fontes: Peter Marmet, Meteorite Time Magazine, Peter Marmet, Peter Marmet e IMCA 1633, respectivamente.
Meteoritos Tabor (1753), Lucé (1768), Siena (1794), Wold Cottage (1794) e Benares (1798). Fontes: Peter Marmet, Meteorite Time Magazine, Peter Marmet, Peter Marmet e IMCA 1633, respectivamente.

Como derradeiro fenômeno para a esperada comprovação, ocorreu uma chuva de meteoritos em L’Aigle, Normandia Francesa, em 26/04/1803, às 13 h, e que durou cerca de seis minutos. Porém, esta não era uma chuva qualquer, pois aproximadamente 3.000 fragmentos rochosos caíram do céu, após um brilhante bólido e três enormes detonações serem testemunhados pelos moradores da cidade.

O primeiro a relatar o fenômeno por meio de artigo foi Charles Lambotin, um estudante de mineralogia e negociante de objetos de história natural que morava em Paris. Ele foi alertado sobre o evento quando um homem em sua pensão lhe mostrou uma carta escrita em 03 de maio por um cidadão de L’Aigle, chamado Marais. Em poucas semanas, Lambotin recebeu informações suficientes para escrever um artigo (Lambotin, 1803) no Journal de Physique. Já o primeiro mapa desenhado de um campo de meteoritos espalhados em uma região de queda foi produzido pelo mesmo Marais, sendo inserido em Lambotin (1819), 16 anos após a primeira publicação.

Primeiro mapa de dispersão de meteoritos em uma região de queda, feito por Marais, cidadão de L’Aigle. Fonte: astrosurf.com
Primeiro mapa de dispersão de meteoritos em uma região de queda, feito por Marais, cidadão de L’Aigle. Fonte: astrosurf.com

Ao mesmo tempo, Fourcroy e Vauquelin analisaram as pedras de L’Aigle e constataram que eram similares, em composição química, a todas as outras “pedras” caídas, dando apoio à hipótese de Chladni. Baseado nesses fatos, Jean-Antoine Chaptal, o então Ministro do Interior, enviou o jovem Jean-Baptiste Biot à cidade de L’Aigle para reunir informações detalhadas sobre o evento.

Jean-Baptiste Biot era um físico, astrônomo e matemático francês, fascinado por meteoritos. Como muitos outros franceses, estudou no Collège Louis-le-Grand até 1793 e depois na prestigiada École Polytechnique, em Paris, fundada durante a Revolução Francesa. Um dos motivos de sua fascinação por meteoritos eram as histórias sobre eles parecerem inacreditáveis. Um exemplo é a chuva de “pedras” ocorrida na noite de 24/07/1790, em Barbotan, no sul da França, onde os habitantes relataram que precisaram procurar refúgio em suas casas para se protegerem. Discípulo de Gaspard Monge, que o incentivou a prosseguir em sua brilhante carreira, Biot foi nomeado, com apenas 23 anos, professor de matemática na Universidade de Beauvais. Em 1800, graças à influência de Laplace, Biot foi convidado a lecionar física teórica no Collège de France. Eleito membro correspondente da seção de matemática da Academia de Ciências, Biot publicou seu primeiro trabalho logo no ano seguinte. Em 11/04/1803, foi eleito membro efetivo na mesma seção.

Físico, astrônomo e matemático francês, Jean-Baptiste Biot (1774 – 1862). Fonte: brasilescola.uol.com.br
Físico, astrônomo e matemático francês, Jean-Baptiste Biot (1774 – 1862). Fonte: brasilescola.uol.com.br
Mapa de dispersão dos meteoritos de L’Aigle feitos por Jean-Baptiste Biot. Fonte: fallingrocks.com
Mapa de dispersão dos meteoritos de L’Aigle, feito por Jean-Baptiste Biot. Fonte: fallingrocks.com

Assim, em 05/06/1803, Biot deixou Paris e viajou para Alencon, uma cidade grande a cerca de 15 léguas de distância de L’Aigle. Ao chegar, sua primeira ação foi escutar os residentes sobre o fenômeno. De Alencon a L’Aigle o relato era o mesmo e ele tinha muitas testemunhas que repetiram similaridades. Em L’Aigle, Biot encontrou nos campos, por quase 35 km², uma grande quantidade de rochas meteoríticas, que diferiam inteiramente das rochas e minerais da região ou de qualquer outra que já havia sido vista naquela parte do país. Alguns delas pesavam quase 7 kg, e todas, ao serem quebradas, exalavam um forte cheiro de enxofre.

Quando a chuva de “pedras” ocorreu, foi relatado que era muito parecido com uma estrela cadente, exceto muito mais brilhante. Dizia-se também que parecia um “trem ferroviário pesado”. As pedras que caíram atingiram telhados, árvores e calçadas, e apenas uma lesão no braço foi relatada.

Vários jornais informaram sobre o emocionante evento, no qual a investigação de Biot foi considerada muito interessante na época, por causa de sua abordagem e metodologia inovadoras.

“Ele primeiro verifica a estrutura mineralógica do local onde as pedras foram encontradas e descobre que, sob nenhum aspecto, existe uma abordagem fraca a substâncias como a investigação física e química que comprova que essas pedras são. Ele então examina o testemunho daqueles que viram o meteoro e daqueles que ouviram sua explosão. Em vez de ir imediatamente para o local onde se diz que o meteoro caiu, ele começa desenhando um círculo de alguns quilômetros ao redor dele e compara o testemunho daqueles que vivem à distância com aqueles que vivem no local; por esse meio, ele encontra uma notável uniformidade quanto ao tempo e às circunstâncias – pontos nos quais o testemunho de homens que estavam inventando ou iludidos seria necessariamente diferente.”

The Practical Philosopher at Work, in Manchester Weekly Times and Examiner, 24 December 1858, p. 10.

Depois de reunir testemunhos suficientes e coletar cerca de 2.000 espécimes, Biot retornou a Paris e escreveu um longo relatório que detalhava suas descobertas ao Ministério do Interior. Admiravelmente descrito por Biot (1803; reimpresso por Greffe, 2003), a chuva de meteoritos em L’Aigle convenceu até os franceses céticos de que o material sólido realmente tinha caído do céu e, sim, tinha origem espacial! Seu relatório parecia uma história, mas tinha o rigor científico. Por se basear em evidências de testemunhas reais, tinha valor de interesse humano e em apenas alguns meses, após sua publicação, a ideia de que meteoros vieram do espaço foi reconhecida na comunidade científica, como descreve o pesquisador francês Matthieu Gounelle.

Relatório de Jean-Baptiste Biot sobre os meteoritos de L’Aigle entregue à Academia de Ciência de Paris e ao Ministério do Interior. Fonte: meteorites.grandegaleriedelevolution.fr
Relatório de Jean-Baptiste Biot sobre os meteoritos de L’Aigle entregue à Academia de Ciência de Paris e ao Ministério do Interior. Fonte: meteorites.grandegaleriedelevolution.fr

Biot era um cientista cujo currículo também inclui o primeiro voo de balão científico. Ele acreditava firmemente no poder da divulgação científica e seu relatório dramático e literário sobre a queda de L’Aigle foi notado na mídia popular e nos círculos científicos, ajudando a dar crédito à sua teoria. Uma fraqueza do trabalho de Chladni foi que ele não visitou o local de queda dos meteoritos que ele relatou e, também, não entrevistou testemunhas, revelando, assim, a importância de haver um rigor na metodologia científica para obter credibilidade à tese a qual defende.

Assim, após a incrível chuva de meteoritos de L’Aigle, a Ciência Meteorítica estava oficialmente conhecida e reconhecida em um mundo onde o misticismo não morreu, mas que apenas deu lugar a novas fascinantes descobertas. Hoje, sabemos que podemos “tocar” a Lua, Marte e rochas que datam o início do nosso Sistema Solar ou até antes dele!

L’Aigle é um meteorito rochoso, classificado como um condrito ordinário L6. O Museu Nacional/UFRJ possui um fragmento dele em sua Coleção de Meteorítica, o qual foi resgatado após o trágico incêndio da Instituição, ocorrido em 02/09/2018.

Fragmento do meteorito de L’Aigle, pertencente à Coleção de Meteorítica do Museu Nacional/UFRJ. Foto tirada antes do incêndio que acometeu a Instituição, ocorrido em 02/09/2018. Fonte: Museu Nacional/UFRJ.
Fragmento do meteorito de L’Aigle, pertencente à Coleção de Meteorítica do Museu Nacional/UFRJ. Foto tirada antes do incêndio que acometeu a Instituição, ocorrido em 02/09/2018. Fonte: Museu Nacional/UFRJ.

A França foi o local da queda de vários meteoritos muito importantes, como o Ensisheim, Lucé, L’Aigle, Chassy, ​​Alais, Orgueil e Ornans. Certamente nos encontraremos novamente para falar sobre esses meteoritos que guardam um valor histórico ímpar! Até breve!

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