A cultura do Egito Antigo já é por si só envolta de puro misticismo, que nos fascina há muitas gerações, inspirando livros e ficções milionárias de Hollywood. Agora, imagine pegar uma pitada dessas histórias e acrescentar mais um ingrediente fascinante: Meteoritos! O resultado dessa “mistura extraterrestre” não poderia ser melhor! Hoje, vou contar mais histórias incríveis sobre os meteoritos… bem antigas mesmo… que datam antes de Cristo!

Como os egípcios cultuaram e utilizaram o ferro meteorítico em sua sociedade?
Pegando carona em um DeLorean, nossa viagem no tempo vai para alguns milênios antes de Cristo, quando os meteoritos inicialmente eram adorados não só como presentes dos deuses, mas também como “sementes do criador” na Terra. Para a civilização egípcia, que habitou a Terra entre os anos de 4.500 a.C e 641 d.C., o ferro era conhecido como o “ferro do céu”, sendo associado ao sol, à morte e ao renascimento. Assim, no século 13 a.C. eles já tinham ciência desses raros pedaços de ferro que caíam do céu, antecipando-se à cultura ocidental em mais de dois milênios.

Nos primeiros hieróglifos do antigo Egito, a palavras biA era eventualmente traduzida com ferro, mas podia ser facilmente referida a materiais com aparência ou propriedades físicas semelhantes, como foi encontrado em diversos textos, incluindo os textos de funerais esculpidos nas paredes internas de algumas pirâmides (datado ~2.375 a.C.). A partir da 19ª dinastia (~1.295 a.C.), uma nova palavra para se referir ao ferro foi encontrada nos hieróglifos, sendo agora biA-n-pt, que pela tradução significa “ferro do céu”.
O porquê dessa palavra ter surgido nos registros egípcios ainda é desconhecida, porém ela passou a ser utilizada para todos os ferros metálicos. Uma das suspeitas para o surgimento repentino dessa expressão foi um grande evento de impacto ou uma larga chuva de meteoritos, no qual a população que testemunhou algum desses acontecimentos deixou dúvidas sobre a origem do misterioso “ferro do céu”. Um possível candidato é o impacto do meteorito Gebel Kamil, que caiu no sul do Egito, mas não possui data registrada da sua queda. Com base nos estudos arqueológicos, uma grande cratera produzida pelo impacto de um meteorito de ferro foi descoberta no sul do Egito em 2008 e estima-se que ela tenha se formado nos últimos 5.000 anos, sendo uma possível fonte de inspiração para esse novo nome… “ferro do céu”.
Os Meteoritos na Religião Egípcia
A pedra Benben foi o mais sagrado objeto dentro do templo em Heliópolis, situada a cerca de 10 km a noroeste de Cairo e uma das cidades mais importantes do ponto de vista religioso e político no Egito Antigo. Esta pedra simbolizava o primeiro fenômeno de criação na Terra, surgida a partir das águas primordiais (Nun), sendo a primeira substância sólida originada de uma “gota da semente” do deus Atum. Estudiosos acreditam que se refira a um meteorito.
Também conhecido como Tem ou Temu, Atum foi o primeiro e mais importante deus egípcio antigo a ser adorado em Iunu (Heliópolis, Baixo Egito), embora, em épocas posteriores, o deus Rá tenha se destacado na mesma cidade e o colocado em certo esquecimento. A tendência dominante em toda história do Egito foi o desenvolvimento de uma religião solar. Assim, no Antigo Império (3.200 a.C. a 2.100 a. C.), Rá (o Sol, deus de Heliópolis) impôs-se como divindade nacional. Já no Médio Império (2.100 a.C. a 1.580 a.C.), Ámon (Amum) era o deus supremo do antigo Egito, sendo o principal da cidade de Tebas (atual cidade de Luxor), localizada no Alto Egito, e constituía a tríade de Tebas com sua esposa Mut e seu filho Khonsu. Dessa maneira, a supremacia política de Tebas (agora capital, antes era Mênfis no Antigo Império) sobre o Egito levou a fusão do deus tebano Ámon com Rá de Heliópolis, da qual resultou uma síntese no culto de Ámon-Rá, transformando-se em um dos principais deuses do Egito antigo.
O Templo de Khonsu, filho de Ámon, ou também chamado de Templo de Khons e Templo de Karnak (localizado à margem direita do Nilo, na atual cidade de Luxor), foi construído por Ramsés III (1.217 a 1.155 a.C.) como um templo dedicado ao deus Ámon-Rá. É deste templo em Tebas que uma das maiores referências sobre a pedra Benben foi encontrada, onde as inscrições feitas neste templo conectam-na com a semente do criador Ámon-Rá. Como interpretado em citações retiradas de paredes do templo, a pedra Benben pode ser entendida como uma pedra escoada, cuja natureza era a semente do deus criador.
“Ámon-Rá é o deus que gerou (bnn) um lugar (bw) no oceano primitivo, quando a semente (bnn.t) fluía (bnbn) no primeiro tempo… fluía (bnn) sob ele como de costume, em seu nome semente.”
Infelizmente, a pedra não existe mais, porém, pelos registros, provavelmente tinha forma de um cone. Diversos egiptologistas afirmam ser possível que Benben tenha sido uma rocha com origem meteorítica. Entre os principais a afirmarem que a pedra era um meteorito estão E. A. Wallis Budge em 1926, Jean-Philippe Laurer em 1978, Robert Bauval em 1989 e 1994, e mais recentemente, Toby Wikinson em 2001. Bauval foi o primeiro especialista a pontuar o fato de que o formato cônico do Benben coincide com certo grupo de meteoritos, conhecidos como “orientados”, isto porque alguns poucos meteoritos, ao penetrarem na atmosfera terrestre, atingem uma orientação preferencial de entrada, adquirindo formas mais aerodinâmicas como um cone ou escudo.

De acordo com Bauval, a pedra Benben era provavelmente um meteorito orientado, pesando entre 1 e 15 toneladas, porém, em sua última revisão, estimou seu peso entre 6 e 15 toneladas. Como descreve os historiadores, ela foi erguida em direção ao céu sobre um amplo pilar, assemelhando-se ao obelisco, cuja coluna delgada era conhecida pelos egípcios como um “divisor do céu”. O meteorito tempos depois foi substituído por uma “réplica”, nomeada como Benbenet, termo geralmente traduzido como pirâmide. Dessa forma, o obelisco com a pedra no seu topo era um memorial para o ato da criação.

A expressão pedra Benben era também usada para se referir à pedra que ficava no topo das pirâmides egípcias. Ela era o local em que os primeiros raios de Sol tocavam. Durante a V dinastia egípcia, o retrato de Benben foi formalizado como um obelisco achatado, porém mais tarde, durante o Médio Império, tornou-se um longo e fino obelisco.
Talvez o segundo caso mais famoso de adoração aos meteoritos no Egito seja o objeto cultuado em Tebas, chamado ka-mut-ef. Como descreve Alan Alford em seu livro “Pirâmides dos Segredos” (Pyramid of Secrets), o egiptologista G. A. Wainwright, em 1932, concluiu que era quase certo que um pequeno meteorito de ferro era cultuado como objeto sagrado para três deuses: Ámon, Min e Hórus. Uma série de estudos comprovou que Ámon e Min estavam intimamente ligados com os termos “meteorites” e “thunderbolt”, que tem o mesmo significado: meteoritos. Esses deuses eram duas partes do ka-mut-ef e Hórus, o terceiro. Eles estavam ligados ao objeto ka-mut-ef porque seu significado literal é traduzido como “touro de sua mãe” e pela mitologia, Ámon, Min e Hórus haviam engravidado suas mães.
Min era deus da fertilidade e da colheita, sendo uma personificação do masculino. Ele também era adorado como o Senhor do Deserto Oriental. Seu culto se originou em tempos pré-dinásticos (4° milênio a.C.). Sobre o deus Hórus, os antigos egípcios tinham muitas crenças diferentes, na qual a mais comum era ser filho dos deuses Ísis e Osíris. Depois que Osíris foi assassinado por seu irmão Seth, Hórus lutou com Seth pelo trono do Egito. Nesta batalha, Hórus perdeu um dos olhos. Quando seu olho foi restaurado, tornou-se um símbolo de proteção para os antigos egípcios. Após esta batalha, Hórus foi escolhido para ser governante do mundo dos vivos. Assim, ele é visto como o deus do céu, do sol nascente e mediador dos mundos, representando a luz, a realeza e o poder.
A Cerimônia de “Abrir a Boca”
Grande parte das referências ao ferro meteorítico no Egito Antigo é simbólica, sendo associada a deuses e rituais de sepultura, como a cerimônia fúnebre de “Abrir a Boca” durante a mumificação da realeza, ou até mesmo com monumentos de deuses, onde tais sepulturas seriam um lugar de renascimento. Esse ferro era utilizado para confecção de artefatos, como, por exemplo, adagas utilizadas nessas cerimônias, pois o ferro do meteorito exercia um papel importante nesses rituais por estar associado a eventos naturais poderosos, como a passagem de meteoros (grandes bólidos brilhosos cruzando o céu) e barulhos de raio.
O ritual consistia em golpear a boca da múmia real com a adaga, aplicando nela certa violência e força, para assim poder trazê-la à vida, no sentido de que o espírito divino residente no interior do corpo seria liberado. No caso do funeral real, a cerimônia da “Boca Aberta” era o ato crucial que traduzia o rei como espírito do céu e acreditava-se que tais fenômenos naturais associados com a chegada do meteorito pudessem intensificar a potência do ritual.
G. A. Wainwright, um egiptologista do início do século XX, desenvolveu diversas ideias a respeito do uso dos meteoritos como objetos sagrados, adorados e utilizados em rituais. Sobre o ritual de “Abrir a Boca”, ele diz que a “chave” para esta cerimônia foi a partir da cidade de Letópolis, associada a um meteorito, no qual o raio ou meteorito não só abriu a boca do rei, mas também abriu as portas para o céu localizadas sob a cidade. Em um dos seus textos, Wainwright afirma:
“Vendo, portanto, que há muita evidência de que Letópolis era uma cidade de meteorito, pode restar pouca dúvida de que o caminho para o céu, que foi oferecido por uma escada de corda, foi derivado do voo de um meteorito. Pode até ter sido um raio, que a religião primitiva não distinguiu de um meteorito”.
Letópolis é uma cidade situada a cerca de 11 milhas ao oeste de Heliópolis e cerca de 10 milhas ao norte de Gizé. Seu nome é derivado do grego, que significa Cidade do Meteorito (Thunderbolt City) e seu nome egípcio Khem foi escrito com o hieróglifo “meteorito do deus Min” (um dos deuses do meteorito ka-mut-ef).
Na semana que vem, vamos continuar a viagem pelo Egito Antigo e apresentar alguns artefatos comprovados por terem sido feitos com ferro meteorítico, sempre encontrados em sepulturas ou tumbas de grandes faraós. Os egípcios acreditavam que o tal “ferro do céu”, por ser divino, possuía poderes de intensificar os rituais de mumificação e a ressurreição do espírito, como a adaga de ferro do Faraó Tutancâmon. Não percam… até nosso próximo encontro!!!
Leituras Complementares:
- Alford, A. F. 2010. Pyramid of Secrets: The architecture of the great pyramid reconsidered in the light of creational mythology.
- Revista Meteorites. 2013. Iron from the Sky: Meteorites in Ancient Egypt. Volume 19, n° 4, p. 8-13.
- A Religião e a Magia no Egito Antigo
- Períodos da História Egípcia
- Digital Egypt for Universities
- Horus