Meteoritos no Egito Antigo: Artefatos Meteoríticos

A Adaga de Tutancâmon

Uma das descobertas mais incríveis para a Ciência Meteorítica, relacionando-a com a história do mundo, foi encontrar a adaga do jovem faraó Tutancâmon dentro do seu sarcófago, localizado no Vale dos Reis, na atual cidade de Luxor (antiga cidade de Tebas) no sul do Egito, onde eram enterrados os grandes faraós. Esse é o mais famoso e um dos raros exemplos sobreviventes de objetos de ferro da cultura egípcia antiga, por isso a sua relevância para a história e pesquisa.

O sarcófago do rei Tutancâmon em sua câmara funerária depois que a múmia foi colocada em uma urna de vidro projetada para proteger os restos da umidade e outras contaminações (The Guardian).
O sarcófago do rei Tutancâmon em sua câmara funerária depois que a múmia foi colocada em uma urna de vidro projetada para proteger os restos da umidade e outras contaminações (The Guardian).

Tutancâmon tinha cerca de 17 anos quando morreu. Provavelmente, herdou o trono quando tinha apenas 8 ou 9 anos, tornando-se o 11° faraó da 18ª dinastia do Egito. Ele ficou famoso quando sua tumba foi descoberta intacta pelo arqueólogo britânico Howard Carter, em 1922. Porém, só em 1925, Carter encontrou dois punhais, um de ferro e outro com uma lâmina de ouro, dentro da tumba do rei adolescente, que foi mumificado há mais de 3.300 anos. O que mais intrigou os pesquisadores à época da descoberta e décadas posteriores foram os objetos puramente de ferro, que eram raros no Egito antigo, e o metal da adaga que não enferrujava.

Análises químicas anteriores mostraram-se inconsistentes e só recentemente, em um artigo científico publicado em 2016, sua origem meteorítica foi confirmada.

A adaga com lâmina de ferro meteorítico do faraó Tutancâmon, em exibição no Museu Egípcio do Cairo (Comelli et al., 2016).

Utilizando um espectrômetro de fluorescência de raios-x para determinar a composição química do metal, em ensaio não destrutivo, pesquisadores italianos e egípcios concluíram que seu alto teor de níquel, juntamente com seus níveis de cobalto, sugeria fortemente uma origem extraterrestre para o ferro utilizado na confecção da adaga.

Imagem da múmia de Tutancâmon mostrando a adaga de ferro (34,2 cm de comprimento) colocada na perna direita (seta indicativa) (Comelli et al., 2016).
Imagem da múmia de Tutancâmon mostrando a adaga de ferro (34,2 cm de comprimento) colocada na perna direita (seta indicativa) (Comelli et al., 2016).

Os meteoritos metálicos são constituídos principalmente de ferro (Fe) e níquel (Ni), com pequenas quantidades de cobalto (Co), fósforo (P), enxofre (S) e carbono (C), além de quantidades traço de outros elementos (siderófilos e calcófilos). As recentes análises químicas encontraram quantidades compatíveis aos meteoritos metálicos previamente conhecidos, tendo uma média de 10,8% de Ni e 0,58% de Co em sua composição junto ao Fe, dentro de um intervalo de confiança de 95%. Quanto ao processo de fabricação, especialistas afirmam que, em comparação com outros itens mais simples feitos com esse tipo de material, a alta qualidade com que a lâmina foi forjada indica um domínio dessa técnica na época de Tutancâmon.

Análise química por XRF da lâmina de ferro da adaga de Tutancâmon (Comelli et al., 2016).
Análise química por XRF da lâmina de ferro da adaga de Tutancâmon (Comelli et al., 2016).

Em suas análises, eles também compararam a composição do ferro da adaga com meteoritos conhecidos dentro de 2.000 km ao redor da costa do Mar Vermelho, no Egito, e encontraram níveis semelhantes em um meteorito. Conhecido como Kharga, esse meteorito classificado com um octaedrito fino IVA, foi encontrado a 240 km a oeste de Alexandria, na cidade portuária de Mersa Matruh, que na época de Alexandre, o Grande – no século IV a.C – era chamada de Amunia.

As Miçangas de Gizé

Contudo, mesmo com essa incrível descoberta, a comprovação do ferro meteorítico na sociedade egípcia através desses raros objetos ocorreu um pouco antes, como consequência de uma escavação em 1911, no pré-dinástico cemitério de Gizé, na margem oeste do Nilo, a cerca de 70 km ao sul do Cairo. Assim como Gizé, o Vale dos Reis também se localiza a oeste do Rio Nilo, isto porque no Egito Antigo a margem leste era destinada aos vivos, onde ficavam as cidades, enquanto que a outra, aos mortos, onde ficavam as tumbas, não apenas dos faraós, mas também de nobres e sacerdotes.

A escavação de Gizé revelou 281 sepulturas de origem pré-histórica, das quais duas continham miçangas de ferro, em forma de tubo: sete na tumba 67 e duas menores na tumba 133, datado de 3.350 a 3.600 a.C., durante a Idade do Bronze e milhares de anos antes da Idade do Ferro no Egito (1.200 a 1.000 a.C.).

Descrição original da tumba 67 no Cemitério de Gizé, mostrando a posição e o conteúdo da tumba, que incluía: restos humanos, vasos, o decorativo “descanso de cabeça” de calcário, paleta cosmética ao estilo de “peixe”, um arpão de cobre, pote de marfim e miçangas (Johnson et al., 2013).
Descrição original da tumba 67 no Cemitério de Gizé, mostrando a posição e o conteúdo da tumba, que incluía: restos humanos, vasos, o decorativo “descanso de cabeça” de calcário, paleta cosmética ao estilo de “peixe”, um arpão de cobre, pote de marfim e miçangas (Johnson et al., 2013).

Durante a Idade do Bronze, o ferro era definitivamente raro, seu valor era maior que do ouro. Isto sugere que os artefatos iniciais de ferro não eram adequados para fins utilitários e militares, cujas técnicas de trabalho para produzi-lo em grandes quantidades ainda não haviam sido dominadas. Por esta razão, em geral, supunha-se que objetos de ferro iniciais fossem produzidos de material meteorítico, apesar da rara existência de ferro fundido obtido fortuitamente como subproduto de fundição de cobre e bronze.

Assim, as miçangas encontradas foram originalmente consideradas como sendo de um meteorito, devido à sua composição de ferro rica em Ni. Porém, essa hipótese foi contestada na década de 1980, quando os pesquisadores propuseram que muitos dos primeiros exemplos mundiais de uso de ferro, primeiramente considerados originários de meteoritos, eram, na verdade, tentativas de fundição ou produzidos a partir de minérios de ferro, naturalmente ricos em Ni.

Um exemplo seria o mineral raro chloanite (FeNiCoAs)S2, que produz uma camada de ferro fundido com alto teor de Ni. O método exato de fabricação para esses tipos de artefatos, que obviamente são exemplos de ferro, pelo menos parcialmente fabricados, ainda está sujeito a debate entre os arqueometalurgistas até hoje.

As miçangas da tumba 67 de Gizé foram analisadas primeiramente por Gowland, em 1911, embora não esteja claro quantas ou quais foram analisadas. Sua composição era relatada como óxido férrico hidratado, observando que estas foram completamente oxidadas, sendo 78,7% óxido de Fe e 21,3% de água, com traços de CO2 e “material terrestre”. Posteriormente, a análise de uma das miçangas foi realizada por Desch, em 1928, e descobriu-se 7,5% de Ni e 92,5% de Fe.

Recentemente, análises feitas por duas universidades do Reino Unido e publicadas em um artigo científico em 2013, utilizando uma combinação de microscópio eletrônico e tomografia computadorizada, confirmaram a composição química rica em Ni e encontraram uma estrutura cristalina distinta, conhecida como padrão Widmanstätten.

Miçanga analisada no estudo. Barra de escala de 1 cm (Johnson et al., 2013).
Miçanga analisada no estudo. Barra de escala de 1 cm (Johnson et al., 2013).

Ambas são evidências de que o ferro é proveniente de um meteorito, isto porque os meteoritos têm uma impressão digital microestrutural e química única, pois se esfriaram muito lentamente enquanto viajavam pelo espaço. A composição química encontrada da miçanga nesse estudo foi de 47,5% de Fe, 42,9 de oxigênio (O), 4,8% de Ni e 0,6% de Co.

A miçanga escolhida para estudo foi retirada de um dos cordões encontrados, confeccionados também com pedras preciosas e ouro, o que indica que os fragmentos especiais tinham grande valor para os donos das joias e para os artesãos. Ainda não compreendemos completamente o que os antigos egípcios pensavam sobre o ferro antes de seu uso se tornar comum, porém, ao reconhecerem que o ferro de meteorito chegara do céu, um lugar de deuses, isso lhes daria ainda mais valor e talvez elevasse o status de seu dono.  Aliado a isto, a raridade do metal deu-lhe um lugar especial na sociedade egípcia, tornando o ferro fortemente associado à realeza e ao poder.

Fotografia de vários objetos recuperados do túmulo 67 no cemitério de Gizé, incluindo uma paleta em forma de peixe, um “descanso de cabeça” de pedra calcária e dois cordões com miçangas. A miçanga analisada está marcado com um X (Johnson et al., 2013).
Fotografia de vários objetos recuperados do túmulo 67 no cemitério de Gizé, incluindo uma paleta em forma de peixe, um “descanso de cabeça” de pedra calcária e dois cordões com miçangas. A miçanga analisada está marcado com um X (Johnson et al., 2013).

Além de descobrir que o colar foi elaborado com material vindo do espaço, o estudo também apontou que o trabalho com ferro meteorítico deu aos egípcios a base para dominar a técnica do ferro fundido, surgida 2.000 anos mais tarde. Esse conhecimento teria sido crucial para a posterior produção de ferro a partir de minério de ferro, substituindo o uso de cobre e bronze como os principais materiais usados até então.

Como cita Monteiro (2018), em sua dissertação, os trabalhos de Johnson & Tyldesley (2013) e Comelli et al. (2016) afirmam que o ferro meteorítico foi encontrado em numerosos sítios arqueológicos da Antiguidade, desde o cemitério de Gizé até, inclusive, a tumba de Tutancâmon, cuja sala do “Tesouro” abriga a maior coleção de ferro rico em níquel já descoberta. Entre os artefatos encontrados, além da adaga, destacam-se um pequeno descanso de cabeça e um amuleto do “olho de Hórus”.

Assim, o ferro proveniente de meteoritos teve profundas implicações para os egípcios antigos, tanto na percepção do metal no contexto religioso, com sua origem celeste, quanto nas primeiras tentativas de metalurgia. A mitologia e a cultura egípcia são muito ricas e repletas de detalhes, pois foi uma civilização milenar. Desbravar todas suas histórias, deuses e rituais chega a ser um desafio!

Hoje, nossa matéria teve o intuito de trazer à luz só um pouquinho dessas incríveis histórias entrelaçadas com os meteoritos ou… possíveis meteoritos, como alguns acreditam. Descobrir e imaginar que os meteoritos, ou melhor, o “ferro do céu”, eram tão profundamente adorados e cultuados, torna tão fascinante quanto instigante toda história do Egito Antigo!

Google Arts & Culture

Como noticiado no site TecMundo em 16/07/2020, Google acaba de lançar uma nova ferramenta Intitulado “Fabricius”, um tradutor de hieróglifos on-line integrado ao Google Arts & Culture. A novidade foi lançada em comemoração aos 221 anos da descoberta da Pedra de Roseta, pedaço de granito que permitiu desvendar os significados dessa linguagem. Na plataforma, o visitante também tem a possibilidade de conhecer mais sobre a história do Egito Antigo, acessando materiais sobre as Pirâmides de Gizé, o Rei Tutancâmon e o Livro dos Mortos. A ferramenta está disponível em inglês e árabe!

Leituras Complementares:

  • Comelli, D.; D’orazio, M.; Folco, L.; El‐Halwagy, M.; Frizzi, T.; Alberti, R.; Porcelli, F. 2016. The meteoritic origin of Tutankhamun’s iron dagger blade. Meteoritics & Planetary Science, 51(7):1301-1309.
  • Monteiro, F. A. 2018. Caracterização histórica, mineralógica e metalográfica de artefatos forjados supostamente utilizando ferro meteorítico. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geociências-Patrimônio Geopaleontológico, do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 110p.
  • Johnson, D.; Tyldesley, J.; Lowe, T.; Withers, P. J.; Grady, M. M. 2013. Analysis of a prehistoric Egyptian iron bead with implications for the use and perception of meteorite iron in ancient Egypt. Meteoritics & Planetary Science, 48(6):997-1006.
  • Revista Meteorites. 2013. Iron from the Sky: Meteorites in Ancient Egypt. Volume 19, n° 4, p. 8-13.

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