Referenciados na escrita cuneiforme e encontrados em textos sumérios e acadianos, os meteoritos se fazem presentes desde o início da civilização humana.
A transição entre os períodos da pré-história e o início da civilização humana é marcada, principalmente, pelo surgimento da escrita na região da antiga Mesopotâmia. Ela foi desenvolvida em tábuas de argila utilizando a escrita cuneiforme, onde, em alguns textos, símbolos referentes a estrelas que “piscam” e “caem” eram considerados presságios, sendo a forma como os deuses se comunicavam com os homens. Assim, os meteoritos estão presentes desde quando a humanidade deu seus primeiros passos rumo à construção de sociedades organizadas, detentoras de linguagem, costumes e culturas, integrando narrativas que compõe a mais antiga literatura. Embarque nesta incrível viagem no tempo em mais uma história de meteoritos… ou os meteoritos na história!

O “Berço da Civilização”
As primeiras sociedades da história começaram na região conhecida como Oriente Próximo, atualmente chamada de Oriente Médio, que é tradicionalmente considerada pelos arqueólogos e historiadores antigos como a região do sudoeste da Ásia, especificamente a área circundada pelos Mares Mediterrâneo, Negro, Cáspio e Vermelho, e o Golfo Pérsico/Arábico. Na antiguidade, essa região abrangia as áreas da Mesopotâmia (do grego, meso = no meio; potamos = rio), hoje conhecido como o Iraque, e do Levante, referindo-se à direção do sol nascente (territórios ou partes dos territórios da Palestina, Israel, Jordânia, Líbano, Síria e Chipre), delimitado ao sul pelo deserto da Síria e ao norte pelo Planalto da Anatólia (atual Turquia). A presença dos Rios Tigre, Eufrates e Jordão foi determinante para a construção das primeiras cidades nessa região, também conhecida como Crescente Fértil, devido ao solo fértil que propiciou as primeiras atividades agrícolas e pastoris, permitindo dessa maneira o assentamento dos povos, antes considerados nômades.
Foi nessa região que o desenvolvimento da escrita também teve início, onde os povos sumérios (4.000 a.C. – 1.900 a.C.) começaram a desenvolver-se na região sul da Mesopotâmia, naquela que ficou conhecida como “revolução urbana”. As mais antigas cidades da nossa história, e que adquiriram relevância nessa região, foram as cidades de Ur, Uruk e Nipur. Na realidade, a ideia da escrita surgiu ainda no período pré-histórico, contudo, tábuas de argila com escrita cuneiforme encontrados na cidade de Uruk são os mais antigos registros conhecidos, que datam de 3.200 a.C. A escrita cuneiforme teve uma grande difusão no mundo antigo oriental, porém, provavelmente, nunca foi “popular”, pois devido a sua complexidade ficava sob o domínio de um grupo restrito de especialistas – os escribas – que trabalhavam nas tarefas econômicas e administrativas do país. A escola onde era ensinado a escrita cuneiforme era chamada de é.dub.ba., em sumério e bît ÿuppi, em acádico, literalmente traduzido como “casa das tábuas” e com o tempo se tornou um centro de difusão da cultura e do saber.
Nessa mesma época a literatura começou a desenvolver-se através das narrativas criadas pelos sumérios a fim de elucidar questões tão fundamentais para a raça humana, como “De onde viemos?”, “Como o Mundo Começou?”. Essas narrativas eram basicamente do tipo mitopoéticas, onde se procurava explicar os fenômenos naturais, a origem do universo e dos homens por meio de construções metafóricas e simbólicas, ou epopeias, que eram narrativas de um herói ou uma saga empreendida por ele para responder tais questões. Com isso, a Literatura Suméria é uma das mais antigas do mundo, onde dela se derivou, por exemplo, a base para as narrativas no livro do Gênesis, da tradição hebraica e conhecida pelo mundo cristão. Assim, devido a esses marcos na história da humanidade, como o início da agricultura, das cidades e da escrita, o Oriente Próximo hoje é considerado o “berço da civilização”.

Meteoritos na Escrita Cuneiforme
É nesse “berço da civilização” que os meteoros e suas derivações são descritos em termos breves e gerais em vários textos cuneiformes que são comumente rotulados como “astrológicos”, mas que deveriam ser mais apropriadamente chamados de “astromânticos”, como descreve Bjorkman (1973) em seu trabalho. Isto porque a Astrologia da Mesopotâmia não estava ligada ao Zodíaco, e sim a fenômenos meteorológicos observados no céu.
Como cita Eliade (1978) e Forbes (1964) em seus livros, a expressão an – bar é o mais antigo vocábulo designativo para a palavra ferro na linguagem suméria. Os pictogramas usados representam “céu” e “fogo”, onde o ferro é traduzido como metal celeste ou metal estrela. De maneira semelhante, expressões designadas ao ferro em outras regiões do Oriente Próximo também faziam referência ao céu e aos deuses. De acordo com Richard (1941), a palavra hebraica para ferro, parzil, e o equivalente em assírio, barzillu, são derivados de barzu-ili, que significa “metal de deus” ou “do céu”. Em linguagem hitita (povo indo-europeu que se estabeleceu na região da Anatólia no 2º milênio a.C.) o termo ku-na possui o mesmo significado e nos textos hititas diz que, enquanto o ouro veio de Birununda e o cobre de Taggasta, o ferro veio do céu.
Na região da Suméria, a maioria dos textos em que os meteoros ou meteoritos são citados era do tipo presságios celestes, sendo mensagens enviadas pelos deuses, que exibem uma estrutura característica de causa (prótase) e consequência (apódose), como no exemplo extraído de Thompson (1900).
“Se uma estrela cadente pisca (tão brilhante) como uma luz ou como uma tocha de leste a oeste e desaparece (no horizonte): o exército do inimigo será morto em seu ataque.”
Muitos desses presságios celestes tiveram início nos tempos sumérios (~ 2.300 a.C.), mas a tradição de observar o céu e coletar presságios certamente é muito mais antiga e originou-se no período da pré-história. Eles se encontram em uma coleção com cerca de 7.000 presságios, organizados em 70 tábuas de argila, chamados Enuma Anu Enlil. Alguns desses textos, conhecidos como NAM-BÚR-BI, descrevem procedimentos mágicos que evitariam o mal potencial dos presságios, antes que eles assumissem uma forma tangível. Outros textos sobre meteoros, etc. ocorrem em cartas a reis (séculos VIII e VII a.C.), em comentários, orações, presságios de sonhos e outras categorias diversas.
Esses textos foram escritos em acádio, língua semítica mais antiga registrada, derivada do sumério e que também utilizava a escrita cuneiforme. O nome da língua é derivado da cidade de Acádia, um dos principais centros da civilização mesopotâmica, cujo povo de origem semita migrou do deserto da Síria, fugindo da seca por volta de 2.550 a.C., e dominou o território ocupado pelos sumérios. Como os dois povos possuíam culturas similares, acabaram se unificando para formar o primeiro Império Mesopotâmico ou o Império Acadiano, tendo como principal representante o rei Sargão, O Grande. A língua acadiana chegou a ser usada como língua internacional por todo o Oriente Próximo, inclusive para formular o primeiro código de leis do mundo, o Código Hamurábi, que estabelecia punição aos crimes conforme a gravidade do delito. Foi deste princípio que veio o termo muito utilizado “olho por olho, dente por dente”. Hamurábi foi um rei babilônico, depois que constantes ataques de povos asiáticos chamados amoritas, da região montanhosa da Armênia, acabaram com o Império Acadiano e dominaram a região fundando a Cidade-Estado da Babilônia, formando o Primeiro Império Babilônico, por volta de 2.150 a.C.
Voltando aos meteoritos, na língua acadiana, a palavra kakkabu significa estrela, com o Sumerograma (nome que se dá ao carácter cuneiforme sumério usado como ideograma ou logograma) MUL. Como descreve Bjorkman (1973), a evolução da forma do sinal MUL ocorreu entre 3.000 e 2.000 a.C, mais ou menos da seguinte forma:

O último símbolo cuneiforme tornou-se o mais comum, onde os termos sararu (SUR) e maqatu (SUB) significam “piscar” e “cair”, respectivamente. Ao virem precedendo a palavra kakkabu, indica uma referência, principalmente, a estrelas cadentes e, talvez, a meteoritos.

Termo sararu (SUR) que significa piscar na linguagem acadiana.

Termo maqadu (SUB) que significa “cair” na linguagem acadiana.
Outras referências sobre meteoritos no Oriente Próximo são encontradas na Epopeia de Gilgamesh, uma das maiores e mais antigas obras da literatura mundial, que conta a história do herói homônimo e de seu amigo Enkidu, narrando as proezas e aventuras que ambos passaram juntos. Os mais antigos fragmentos sobreviventes dessa epopeia foram frutos de um poeta babilônico anônimo que os escreveram em acadiano entre 1.700 e 1.600 a.C., porém o épico babilônico tem suas origens literárias em cinco poemas sumérios de antiguidade ainda maior. Cópias dessa epopeia, com variações, continuaram sendo registradas até o século II a.C., contudo, a primeira vez que referências potencialmente meteoríticas apareceram foi nesta versão babilônica mais antiga, chamada de “Versão Babilônica Padrão”, embora versões mais recentes, datadas a cerca de 1.200 – 1.000 a.C., preservassem mais detalhes sobre os possíveis elementos meteoríticos.
As principais citações encontradas na “Versão Padrão” ocorreram na tábua I, das quais as seções mais importantes estavam nas colunas V e VI, sobre um par de sonhos de Gilgamesh, no qual ele descreveu para sua mãe, a deusa Ninsun, pedindo sua interpretação. A epopeia traduzida em 1989 por Stephanie Dalley para a língua inglesa utilizou sinais de associação como parênteses, para mostrar acréscimos de palavras que ajudaram a fazer mais sentido em inglês, e colchetes para marcar traduções incertas. Como transcrito em Larsen et al. (2011), o primeiro sonho de Gilgamesh foi o seguinte:

VERSÃO EM INGLÊS
There were stars in the sky for me.
And (something) like a sky-bolt of Anu kept falling upon me!
I tried to lift it up, but it was too heavy for me.
I tried to turn it over, but I couldn’t budget it.
The country(men) of Uruk were standing over (it).
[The countrymen had gathered (?)] over it,
The men crowded over it,
The young men massed over it,
They kissed its feet like very young children,
I love it as a wife, doted on it,
[I carried it], laid it at your feet,
You treated it as equal to me.
VERSÃO EM PORTUGUÊS
Havia estrelas no céu para mim.
E (algo) como um raio de Anu continuava caindo sobre mim!
Eu tentei levantá-lo, mas era muito pesado para mim.
Tentei virar, mas não consegui orçá-lo.
Os (homens) de Uruk estava de pé sobre ele.
[Os compatriotas haviam se reunido (?)] sobre isso,
Os homens se aglomeraram sobre ele,
Os jovens se amontoaram sobre ele,
Eles beijaram seus pés como crianças muito pequenas,
Eu amo isso como esposa, adorando
[Eu carreguei], coloquei a seus pés,
Você tratou como igual a mim.
Nesses trechos acima em negrito é nítido que se tem a descrição de um objeto pesado que caiu dos céus, no qual Gilgamesh não teria conseguido levantar ou manusear, podendo ser intimamente ligado a meteoritos extremamente densos, como os metálicos compostos de ferro e níquel.
O Uso do Ferro Meteorítico no Oriente Próximo
De acordo com Forbes (1964), um objeto de ferro encontrado recentemente em uma sepultura no período pré-histórico da Mesopotâmia, conhecido como Al Ubaid (5.500 a 4.000 a.C.), foi examinado por C.H. Desch em seu trabalho de 1928 e detectou a presença de 10,9% de níquel, uma das evidências para ser ferro meteorítico, que acredita-se ter sido forjado à baixa temperatura. O Al Ubaid é um período da história que compreende o Neolítico (Idade da Pedra Polida) e a Idade do Bronze, no qual ainda não havia o domínio de técnicas para a obtenção do ferro puro a partir de minérios, como a hematita (Fe2O3) e a magnetita (Fe3O4). O sítio arqueológico desse período é situado a oeste da cidade de Ur e marcado pela cultura das cerâmicas, cujo pigmento preto presente provou-se ser óxido de ferro magnético, ou seja, o mineral magnetita. Eles eram usados como corantes, onde os óxidos de ferro eram diluídos em diferentes graus nas argilas para produzir várias cores. Assim, fica evidente que os sumérios tinham conhecimento dos minérios de ferro terrestre neste período e faziam distinção com o ferro “vindo dos céus”.

Através de descobertas arqueológicas recentes e pesquisas realizadas em alguns desses artefatos, hoje é conhecido que o ferro meteorítico foi usado em muitas dessas regiões do Mediterrâneo Oriental durante a Idade do Bronze ou até antes. Muitos desses artefatos de ferro não puderam ser adequadamente analisados, ora pelo estado pouco preservado, ora por falta de permissão para analisar esses raros objetos. Alguns pesquisadores, como cita Pigott (1999), acreditavam que o fato de conter mais de 1% de níquel e traços de cobalto não eram determinantes para serem considerados de origem meteorítica, isto porque a laterita (solo rico em hidróxido de ferro e que contém níquel e cobalto) poderia ter sido utilizado como matéria-prima. O que enfraquece esta ideia é a raridade e a dificuldade em trabalhar com esse tipo de minério, rico em tais elementos, além das menções ao ferro, como “ferro do céu”, em diferentes civilizações.
Assim, a partir das definições e do uso do ferro no início da civilização, como também as referências encontradas em diversos textos, existem amplas evidências para comprovar o uso do ferro meteorítico na Antiguidade. Porém, a falta de observação adequada desse fato ignorou completamente o estudo das relíquias de ferro até recentemente, como destaca Richard (1941). Outra observação é que estrelas cadentes, bólidos e meteoritos eram vistos como mensageiros dos deuses, contudo, não foram utilizados como objetos de adoração ou atribuídos poderes à pedra pelos povos da região do Oriente Próximo, diferente da sociedade egípcia antiga, mesmo ambas estando geograficamente próximas.
Aliado ao fato do uso do ferro meteorítico nas civilizações antigas ter sido amplamente negligenciado da história durante séculos, até o ano de 2007, como afirma Kolev (2007), apenas 30% das 70 tábuas de Enuma Anu Enlil foram traduzidos, onde existem até algumas, cujo conteúdo ainda é desconhecido ou incerto. Ou seja, este é apenas um exemplo de como ainda existe muita informação acerca da nossa história a ser descoberta e desvendada. Provavelmente, podem incluir referências sobre meteoritos e a todos os fenômenos relacionados a ele, interpretados e utilizados por diferentes sociedades ao longo da civilização humana.
Leituras Complementares:
- Bjorkman, J. K. 1973. Meteors and meteorites in the ancient Near East. Meteoritics, 8.
- Caplice, R. I. 1982. The Akkadian Namburbu texts: an introduction. Undena Publ.
- Forbes, R. J. 1964. Studies in ancient technology. Brill Archive. Vol. 9.
- George, A. 1999. The epic of Gilgamesh. A new translation.
- Heimann, R. B., & Maggetti, M. 2019. The struggle between thermodynamics and kinetics: Phase evolution of ancient and historical ceramics. The Contribution of Mineralogy to Cultural Heritage. EMU Notes in Mineralogy, 20, 233-281.
- Kolev, R. 2007. The ENUMA ANU ENLIL: a panoramic view.
- Kristine Larsen, K. & McBeath, A. 2012. Meteor Beliefs Project: meteoritic weapons. In Proceedings of the International Meteor Conference, 30th IMC, Sibiu, Romania, 2011, pp. 137-144.
- Pigott, V. C. 1999. The archaeometallurgy of the Asian old world (Vol. 16). UPenn Museum of Archaeology.
- Pozzer, K. M. P. 1999. Escritas e Escribas: o cuneiforme no antigo Oriente Próximo. Clássica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, 11(11), 61-80.
- Rickard, T. A. 1941. The use of meteoric iron. The Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 71(1/2), 55-66.
- Thompson, R. C. 1900. The reports of the magicians and astrologers of Nineveh and Babylon. In Assyrian and Babylonian Literature: Selected Translations, introduction by RF Harper (New York, 1904), 451-60.
- Near East
- História Total
- História do Mundo
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